Olá! Sejam bem vindos. Esse é meu blog onde pretendo publicar coisas nas quais gosto. Meus assuntos prediletos são musica, teatro, livros, filmes, karatê e acessibilidade a pessoas com deficiência visual. já que sou cega. Espero que gostem do meu cantinho!
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
Texto Três dias para ver.
Por: Helen Keller
O que você olharia se tivesse apenas três dias de visão?
Helen Keller, cega e surda desde bebê, dá a sua resposta neste belo
ensaio, publicado no Reader's Digest (Seleções)
Várias vezes pensei que seria uma benção se todo ser humano, de
repente, ficasse cego e surdo por alguns dias no princípio da vida
adulta. As trevas o fariam apreciar mais a visão e o silêncio lhe
ensinaria as alegrias do som. De vez em quando testo meus amigos que
enxergam para descobrir o que eles vêem.
Há pouco tempo perguntei a uma amiga que voltava de um longo
passeio pelo bosque o que ela observara. "Nada de especial", foi à
resposta. Como é possível, pensei, caminhar durante uma hora pelos
bosques e não ver nada digno de nota? Eu, que não posso ver, apenas pelo
tato encontro centenas de objetos que me interessam. Sinto a delicada
simetria de uma folha. Passo as mãos pela casca lisa de uma pétula ou
pelo tronco áspero de um pinheiro. Na primavera, toco os galhos das
árvores na esperança de encontrar um botão, o primeiro sinal da natureza
despertando após o sono do inverno.
Por vezes, quando tenho muita sorte, pouso suavemente a mão numa
arvorezinha e sinto o palpitar feliz de um pássaro cantando. Às vezes
meu coração anseia por ver tudo isso.
Se consigo ter tanto prazer com um simples toque, quanta beleza
poderia ser revelada pela visão! E imaginei o que mais gostaria de ver
se pudesse enxergar, digamos por apenas três dias. Eu dividiria esse
período em três partes. No primeiro dia gostaria de ver as pessoas cuja
bondade e companhias fizeram minha vida valer a pena. Não sei o que é
olhar dentro do coração de um amigo pelas "janelas da alma", os olhos.
Só consigo "ver" as linhas de um rosto por meio das pontas dos dedos.
Posso perceber o riso, a tristeza e muitas outras emoções. Conheço meus
amigos pelo que toco em seus rostos.
Como deve ser mais fácil e muito mais satisfatório para você, que
pode ver, perceber num instante as qualidades essenciais de outra pessoa
ao observar as sutilezas de sua expressão, o tremor de um músculo, a
agitação das mãos. Mas será que já lhe ocorreu usar a visão para
perscrutar a natureza íntima de um amigo? Será que a maioria de vocês
que enxergam não se limita a ver por alto as feições externas de uma
fisionomia e se dar por satisfeita? Por exemplo, você seria capaz de
descrever com precisão o rosto de cinco bons amigos?
Como experiência, perguntei a alguns maridos qual a exata cor dos
olhos de suas mulheres e muitos deles confessaram, encabulados, que não
sabiam. Ah, tudo que eu veria se tivesse o dom da visão por apenas três
dias! O primeiro dia seria muito ocupado. Eu reuniria todos os meus
amigos queridos e olharia seus rostos por muito tempo, imprimindo em
minha mente as provas exteriores da beleza que existe dentro deles.
Também fixaria os olhos no rosto de um bebê, para poder ter a visão da
beleza ansiosa e inocente que precede a consciência individual dos
conflitos que a vida apresenta. Gostaria de ver os livros que já foram
lidos para mim e que me revelaram os meandros mais profundos da vida
humana. E gostaria de olhar nos olhos fiéis e confiantes de meus cães, o
pequeno scottie terrier e o vigoroso dinamarquês. À tarde daria um longo
passeio pela floresta, intoxicando meus olhos com belezas da natureza. E
rezaria pela glória de um pôr-do-sol colorido. Creio que nessa noite não
conseguiria dormir.
No dia seguinte eu me levantaria ao amanhecer para assistir ao
empolgante milagre da noite se transformando em dia. Contemplaria
assombrado o magnífico panorama de luz com que o Sol desperta a Terra
adormecida. Esse dia eu dedicaria a uma breve visão do mundo, passado e
presente. Como gostaria de ver o desfile do progresso do homem,
visitaria os museus. Ali meus olhos veriam a história condensada da
Terra -- os animais e as raças dos homens em seu ambiente natural;
gigantescas carcaças de dinossauros e mastodontes que vagavam pelo
planeta antes da chegada do homem, que, com sua baixa estatura e seu
cérebro poderoso, dominaria o reino animal. Minha parada seguinte seria
o Museu de Artes. Conheço bem, pelas minhas mãos, os deuses e as deusas
esculpidos da antiga terra do Nilo. Já senti pelo tacto as cópias dos
frisos do Paternon e a beleza rítmica do ataque dos guerreiros
atenienses. As feições nodosas e barbadas de Homero me são caras, pois
também ele conheceu a cegueira. Assim, nesse meu segundo dia, tentaria
sondar a alma do homem por meio de sua arte. Veria então o que conheci
pelo tato. Mais maravilhoso ainda, todo o magnífico mundo da pintura me
seria apresentado. Mas eu poderia ter apenas uma impressão superficial.
Dizem os pintores que, para se apreciar a arte, real e profundamente, é
preciso educar o olhar. É preciso, pela experiência, avaliar o mérito
das linhas, da composição, da forma e da cor. Se eu tivesse a visão,
ficaria muito feliz por me entregar a um estudo tão fascinante. À noite
de meu segundo dia seria passada no teatro ou no cinema. Como gostaria
de ver a figura fascinante de Hamlet ou o tempestuoso Falstaff no
colorido cenário elisabetano! Não posso desfrutar da beleza do movimento
rítmico senão numa esfera restrita ao toque de minhas mãos. Só posso
imaginar vagamente a graça de uma bailarina, como Pavlova, embora
conheça algo do prazer do ritmo, pois muitas vezes sinto o compasso da
música vibrando através do piso. Imagino que o movimento cadenciado seja
um dos espetáculos mais agradáveis do mundo. Entendi algo sobre isso,
deslizando os dedos pelas linhas de um mármore esculpido; se essa graça
estática pode ser tão encantadora, deve ser mesmo muito mais forte a
emoção de ver a graça em movimento. Na manhã seguinte, ávida por
conhecer novos deleites, novas revelações de beleza, mais uma vez
receberia a aurora.
Hoje, o terceiro dia, passarei no mundo do trabalho, nos ambientes
dos homens que tratam do negócio da vida. A cidade é o meu destino.
Primeiro, paro numa esquina movimentada, apenas olhando para as pessoas,
tentando, por sua aparência, entender algo sobre seu dia-a-dia. Vejo
sorrisos e fico feliz. Vejo uma séria determinação e me orgulho. Vejo o
sofrimento e me compadeço. Caminhando pela 5ª Avenida, em Nova York,
deixo meu olhar vagar, sem se fixar em nenhum objeto em especial, vendo
apenas um caleidoscópio fervilhando de cores. Tenho certeza de que o
colorido dos vestidos das mulheres movendo-se na multidão deve ser uma
cena espetacular, da qual eu nunca me cansaria. Mas talvez, se pudesse
enxergar, eu seria como a maioria das mulheres - interessadas demais na
moda para dar atenção ao esplendor das cores em meio à massa. Da 5ª
Avenida dou um giro pela cidade - vou aos bairros pobres, às fábricas,
aos parques onde as crianças brincam. Viajo pelo mundo visitando os
bairros estrangeiros. E meus olhos estão sempre bem abertos tanto para
as cenas de felicidade quanto para as de tristeza, de modo que eu possa
descobrir como as pessoas vivem e trabalham, e compreendê-las melhor.
Meu terceiro dia de visão está chegando ao fim. Talvez haja muitas
atividades a que devesse dedicar as poucas horas restantes, mas acho que
na noite desse último dia vou voltar depressa a um teatro e ver uma peça
cômica, para poder apreciar as implicações da comédia no espírito
humano.
À meia-noite, uma escuridão permanente outra vez se cerraria sobre
mim. Claro, nesses três curtos dias eu não teria visto tudo que queria
ver. Só quando as trevas descessem de novo é que me daria conta do
quanto eu deixei de apreciar.
Talvez este resumo não se adapte ao programa que você faria se
soubesse que estava prestes a perder a visão. Mas sei que, se encarasse
esse destino, usaria seus olhos como nunca usara antes. Tudo quanto
visse lhe pareceria novo. Seus olhos tocariam e abraçariam cada objeto
que surgisse em seu campo visual. Então, finalmente, você veria de
verdade, e um novo mundo de beleza se abriria para você. Eu, que sou
cega, posso dar uma sugestão àqueles que vêem: usem seus olhos como se
amanhã fossem perder a visão. E o mesmo se aplica aos outros sentidos.
Ouça a música das vozes, o canto dos pássaros, os possantes acordes de
uma orquestra, como se amanhã fossem ficar surdos. Toquem cada objeto
como se amanhã perdessem o tacto. Sintam o perfume das flores, saboreiem
cada bocado, como se amanhã não mais sentissem aromas nem gostos. Usem
ao máximo todos os sentidos; goze de todas as facetas do prazer e da
beleza que o mundo lhes revela pelos vários meios de contacto fornecidos
pela natureza. Mas, de todos os sentidos, estou certa de que a visão
deve ser o mais delicioso.
Fonte: www.lerparaver.com (Site na qual se trata da deficiência
visual)
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